Sentinela

Foto: reprodução da web

    ‘Carioca da gema’ escolado nos palcos do mundo, nunca pensei que aquela virada cultural, em Piracicaba, no interior paulista, virasse tanto a minha cabeça. Depois de tocar no belo Teatro Erotides de Campos, numa manhã ensolarada de sábado, no Engenho Central, peguei a minha amiga viola caipira, atravessei a Ponte Aninoel Dias Pacheco e fui ao encontro da minha família.

    Havíamos combinado almoçar no famoso calçadão turístico da Rua do Porto. E assim, para bem geral da nação dos glutões, o fizemos. A comida estava deliciosa: piapara no tambor, arroz solto e branquinho, salada completa, pirão, molho de alcaparra e pimenta da casa… Lembrar dá fome!

    Caminhamos até o Parque da Rua do Porto ali pertinho, para fazer a digestão e descansar à sombra de uma árvore centenária. Foi quando a minha filha Alice, aos onze anos de idade, toda animada e faceira, veio nos contar acerca de suas descobertas durante o passeio matinal pelas margens do Rio Piracicaba.

– Pai, você nem imagina com quem conversei hoje! Ele me contou que a mãe dele é o Rio.

    Encantado, olhei em redor e vi a mesma expressão no rosto de cada um dos meus familiares naquele momento de descontração. Quando pensei em perguntar quem havia dito isso, a tagarela disparou a história sem ponto e vírgula com sua doce e singela fala infantil.

– Pai… Posso até mostrar pra você. Parece um boneco falante com o corpo de pau e pano e cabeça de lata. Está lá do outro lado do rio com os pescadores e suas varas de bambu. É alto, usa calça jeans, camisa branca com colete, botas e chapéu. Tem um sorriso lindo e diz que fala baixo para não assustar os peixes. Falou que depois que a mãe morreu o rio ficou no lugar dela como a ‘coisa’ mais importante da vida dele… Sabe o que ele disse também, pai?
– Conte-nos filha!
– Que cuida de sentinelas, pai. Daqueles guardiões da natureza que a gente vê na margem direita Rio Piracicaba. É brincalhão e faz tempo que monta bonecos com tudo o que encontra pelas ruas. Quando morava com os pais, mexia com barro e fazia tijolos. Depois trabalhou numa fábrica. Mas ele disse que é triste com uma coisa, pai! Você sabe que tem gente que maltrata o Rio? Que joga sujeira nele? Contou-me também que nunca ficou sem ter o que comer graças ao Rio Piracicaba… Ele fica olhando tudo e todos por ali. Parece até que nunca dorme para defender o Rio.
– Pai, vem cá, vem cá, vem cá… Vou mostrar quem ele é!

    Súbito, saímos por instantes do mundo imaginário de Alice, atravessamos a Avenida Beira Rio e deparamos com a beleza daqueles ‘seres’ aparentemente estáticos. À frente de todos, Alice apontava para um deles, afirmando com convicção:

– Pai, está vendo, é aquele… É Aquele! Olha, olha… Sabe como ele se chama?
– Elias Rocha, pai!

    De cara, percebemos ali a fascinante e libertária fantasia da nossa Alice; tal qual a personagem do romancista, poeta e matemático britânico Lewis Carroll, no épico “Alice no País das Maravilhas”.

– Ah! Entendi Alice. Ele é o homem que se transformou num boneco livre.

_PAULO DE TARSO PORRELLI