Décadas vivemos doutro lado do oceano posto entre nós e as Terras de Pindorama. E nesse nosso regresso às origens eu não poderia deixar de mostrar ao meu marido vestígios doces da minha infância.
Meu eterno companheiro Enzo é o mais velho dos noves filhos de uma das muitas famílias italianas radicadas no Oeste Paulista – gente trabalhadora da Terra Nostra. Tão logo se tornou arquiteto, foi em busca de sua gênese Napolitana. Assim, pouco pôde desfrutar das delícias do Centro-Oeste Brasileiro; onde nasci e o conheci.
Experiências somadas além-fronteiras e finalmente desembarcamos no Brasil. Fomos direto cuidar da nossa sonhada casa na Costa Verde Esmeralda, no litoral sul fluminense. Duas semanas depois deu comichão; fizemos as malas e saímos rumo à pousada que fora fazenda de vovô até o final do século passado.
No aeroporto, já em Goiânia, alugamos um carro e, sem titubear, pegamos a GO 070. Vidros abertos; prosa saudosa; vigorosas lembranças; cachoeiras discretas ao longe; fragrâncias do cerrado; coração meu apertado. A fala mansa e agradável do Enzo encurtou o caminho.
Pronto: lá estava eu a me ver feito miragem ainda menina vendo o mundo da varanda da casa grande da Fazenda Cangalha. E quanto mais perto chegávamos mais reais, ante meus olhos, ressurgiam quintais, roupas nos varais, pomares, cirandas de roda, lagos de mim.
A mesma porteira de pau de eucalipto entalhado e eu quase sem força para sair do carro. Enfim, Enzo nos anunciou como hóspedes.
– Bom dia Senhor! Disse Enzo em audível tom e visível expressão de forasteiro.
O funcionário se aproximou dando-nos boas-vindas.
– Bom dia, meu nome é Quirino. Muito prazer.
– O prazer é nosso Seu Quirino. Sou Enzo e esta é a minha esposa Emiliana. Temos reserva. Pode nos acompanhar?
– Sim. Podem entrar e guardar o carro naquele rancho de bambu coberto de sapé, ao lado dos pés de pequi. Eu vou a cavalo mesmo. Mas, antes, por favor, observem aquela casa grande.
Olhei à frente e não consegui me conter de ansiedade. Voltei no tempo e quis correr descalça pelo gramado até as escadarias de pedra. Respirei fundo…
– Sim Seu Quirino. Conheço palmo a palmo aquela casa. Foi lá onde nasceram meu avô, meu papai, meus dois irmãos e eu.
Seu Quirino ficou placidamente pasmo e me olhou. Naquele instante percebi algo muito familiar nos traços do rosto daquele homem. E ele se adiantou.
– A Senhora é neta de Jacobino e filha de Augusto?
Um choro compulsivo me dominou ao saber que minha família não tinha sido esquecida. Ainda soluçando eu disse sim balançando a cabeça.
Enzo acolheu-me nos braços, me conduziu de volta ao carro e seguimos adiante. Na casa fomos recebidas pela mãe de Seu Quirino.
– Emiliana! Como é bom te ver. Que saudade. Quanto tempo. Se achegue minha menina.
– Mãe Aurora?! Cristo Deus! Surpresa assim eu não esperava. Como pude passar tanto tempo sem seu colo, longe de seu afeto e ternura.
Abraçamo-nos sem fim.
– Vem filha! Tem um cafezinho quentinho no bule e os seus iluminados bolinhos de chuva esperando a gente lá na cozinha.
– Milagre nós outra vez aqui nesta cozinha, mãe Aurora. É daqui e aqui que eu enxergava o vaivém de reluzentes bolas de luz. Assim eu via todas as deliciosas e cheirosas comidas que a senhora preparada com carinho, esmero e sabedoria. Minha ama de leite, quanta emoção. A Senhora me ensinou a macerar plantas e raízes e delas extrair os aromas da vida.
– Lembrei-me dos seus resmungos e de quando eu lhe dizia: “Tá com dor nas cadeiras? Lava os pratos e arruma a pia que logo passa. E, se não passar, pega a vassoura e varre o terreiro pra ficar logo boazinha”.
Caímos todos na gargalhada. Entusiasmada, Mãe Aurora soltou a língua ecoando tiradas pra lá de Shakespearianas. Feliz de mim que soube ouvir e seguir tais ensinamentos.
E sob a lua cheia estelar nós seres eternos.
Na poluição zero da Fazenda Cangalha.
Reencontros ancestrais – fraternos.
Hoje sei que realmente o amor não é fogo de palha.