As badaladas ecoam do cume da torre sineira no exato instante em que os ponteiros do relógio da Igreja dos Arcanjos, simultânea e opostamente, apontam para o norte e à direção sul. É a hora da Ave Maria. A capela é ponto sagrado de encontro de fiéis a rezar todo santo dia. Ao bem da verdade, como na voz do povo, todo dia é santo.
Logo depois se pôde ouvir dos quatro cantos da cercania, misturado aos gorjeios de pássaros, o vozeirão oficial da povoação anunciando utilidades públicas e recentes falecimentos. Recados dados; pronto: som na vitrola. A moda de viola toma conta do anoitecer. Informação e música típica alegram a todos através dos alto-falantes da paróquia.
Essa difusão de acontecimentos e o fomento do entretenimento pelo serviço de alto-falante é uma singela tradição sabiamente conservada pelos moradores de Céu da Terra. Eles reconhecem o valor do único veículo de comunicação da localidade, o que reforça a conquista da cidadania e sustentação da cultura local.
Quando faz calor falta lugar nos bancos na Praça das Ladinhas e a conversa fica para lá de comprida pelas alamedas adentro. Nas noites frias aparece o beatério de terço na mão, trajadas de azul-marinho dos pés à cabeça. Mas o firo as afugenta e elas voltam rapidinho aos lares, assim que cumprem o dever religioso. Se as noites ficam gélidas de doer ossos, algumas rezam mesmo é atrás das vidraças das casas. Entre um vão e outro das cortinas, é o momento ideal ao indispensável deleite diário das comadres: a bisbilhotice.
Mané do Rádio e Chico do Badalo são amigos de anos. Não se tem registro de um dia sequer terem faltado ao trabalho. Mané badala até pelos cotovelos e adora ser portador duma nova. Sacristão Chico tem badalo até no nome e ai de quem ousar badalar no lugar dele.
Tudo ia muito bem naquela quinta-feira, 10 de julho. Era mês de férias escolares. No largo da matriz predominavam sons de crianças brincando no parque sob olhares de mamães e vovós que proseavam e tricotavam como numa eterna tarde de domingo.
Chico do Badalo, calmamente encerava os bancos da igreja, já que as férias dele são sempre nos janeiros. De vez em quando dava uma espiada lá fora, só para matar a curiosidade. O dia seguia no ritmo de sempre. Os vasos estavam limpos com flores novas, as toalhas das missas lavadas e o chão varrido. De repente, da porta dos fundos atrás da sacristia surgiu o Mané do Rádio.
– Mané: tá correndo de quem capiau? Viu bicho-papão?
– Não, Chico, você nem imagina o que aconteceu! Precisamos tocar os sinos para chamar todo o mundo.
– Mas o que se passa filho de Deus? Conta pra mim… Vai bicho-do-mato; desembucha!
– Chico! Não dá tempo de contar. Subo lá com você. Vamos sem demora voando bater os sinos. Depois conto tudo de uma vez só… Sô!
Os duzentos degraus da escada espiral que liga a sacristia à torre foram poucos para Chico e Mané. Num piscar de olhos lá estavam os dois a badalar sem parar. A vibração dos dois gigantes de ferro fundido atingiu decibéis ensurdecedores. Foi quando janelas e portas iam-se abrindo. Do casario e das lojas não parava de sair gente rumo à escadaria da igreja.
A dúvida era geral: o que levara o Chico do Badalo em disparada às alturas a alarmar a população naquela hora? E, pior, sem nenhum prévio boatozinho, por menor que fosse. A notícia teria passado despercebida das mexeriqueiras de plantão?
– Povo céuterrense! É com pesar que estou aqui para informar que expirou, passou desta para melhor, pereceu, bateu com as botas, faleceu. Olha, gente, o fato é que o nosso Prefeito Tadeu morreu.
– E a primeira dama pede para informar que o velório será a partir das 16 horas na Câmara Municipal. E ninguém pode faltar!
– Fala aí, Mané. O que matou o ‘home’?
– Chico. Vamos descendo… vamos descendo.
– Para de enrolar seu amigo, Mané. Conta tudo para mim seu bode velho.
– Olha Chico, está certo. Então vá lá: a primeira dama pediu para eu comunicar somente a morte do marido dela. Mas para de forma alguma dizer a quem quer que seja que o Prefeito Tadeu morreu engasgado. Agora vamos ligeiro até o velório ver se a gente descobre mais sobre o caso.
Mané e Chico chegaram à Câmara Municipal. O cerimonial fúnebre já tinha coroas, tapetes, velas acesas e café com biscoito. Enfim, tudo pronto a espera do caixão. No Salão Nobre não cabia mais um cristão. Carpideiras encharcavam lenços de rios de lágrimas dentro do legislativo. Comoção total. A cidade parou.
– Nossa, Mané, ele morreu cedo demais. Deixou mulher nova e duas crianças muito pequenas. Pena, ele era tão bom.
– É, amigo Chico, a vida é assim. Começamos sem saber quando será o fim. Mas que tem fim, isso tem sim.
– Olhe aquilo, Chico! Olhe só para aquela criatura virando a esquina. Me dê um beliscão e diga-me que isto não é verdade.
– Jesus, Maria e José, Mané… Cruz-credo… É um fantasma?!
Caminhando cabisbaixo, de calça jeans, camisa branca, botas com solas de pneu e cara de poucos amigos, aproximava-se o Prefeito Tadeu.
Os dois empalideceram e foram saindo de fininho. Desde então os sinos não dobram mais e os alto-falantes e a vitrola emudeceram.
Badaladores Chico e Mané sumiram na poeira.