Artigo de luxo

Foto: senivpetro

    Na vitrine da vida volta e meia um sentimento relâmpago transpassa o meu córtex cerebral causando leve furor no meu cerebelo. Aí me bate alguma disritmia e meu cabelo encaracolado fica arrepiado. Atônito, nesses instantes cruciais, eu nem sempre cumpro meu dever de escrevinhador. E a translúcida percepção de mim em meio ao todo se reforça etérea naquele inexato tempo – espaço. Até porque viver não é ciência exata.

    Assumo assim mea-culpa pelos tropeços meus no ofício de juntar letras. Principalmente ante a grata felicidade de poder ler com facilidade os saberes e quereres dos olhares em redor – o que penso ser parte importante da tarefa a que se destina um escritor.

    Para ilustrar a partilha e encurtar o nariz de cera deste escrito, tomo a liberdade de parafrasear o saudoso radialista Brim Filho que, com sabedoria soteropolitana, nos acalentava no frenesi diário na paulicéia desvairada: “tudo manteiga, companheirinho, tudo manteiga”; exclamava sorridente. Senhor Brim estava certo – as sutilezas dos seus dizeres ficaram e ele é agora uma estrela a nos iluminar lá do céu. Mas, confesso, nem sempre é fácil encontrar esse viés de lirismo bem-humorado na hora de relatar o que salta à vista; tamanha a acidez das realidades.

Pois falemos um pouco dos tons e matizes do não-tátil, mormente numa época em que o ter se esforça incessantemente para transformar a gente num não-ser.

    Tudo rápido e junto ao mesmo tempo agora, súbito leio num portal de notícias que a filha mais velha de Michael Jackson tentara suicídio. Triste legado familiar o do rei do ritmo, cantor maior da soul music e do R&B. Ele também, tudo indica, foi vítima dos próprios excessos. Era atacado constantemente pelas línguas maledicentes propagadoras de blasfêmias; dentro e fora das mídias. Afinal sucesso e fama são conceitos distintos. Imagino que Michael soubesse disso. Da tevê aberta chega uma informação do assassinato de um jovem cantor cujas letras são feitas de expressões de domínio público ou jargões como “É Classe A”. Noutro site leio declarações de mulheres afirmando terem visto detentos carregando cabeças doutros presos durante mais uma rebelião no interior paulista.

    Reitero: sinais de um tempo imediatista, de ostentação e ganho fácil. Ora bolas! Tais cenas de horror estão dia a dia se tornando quase naturalmente parte de nós e nelas sinto-me um Quasimodo assustado no alto da torre do castelo da minha consciência. Deslumbro-me na mesma medida em que me envergonho da alegria de ser um cinquentão se dando o direito a momentos de ócio criativo. Mas, não tem jeito. A inquietude ocupa grande parte da casa do meu pensar. E me pego para lá e para cá na tentativa de entender os porquês da repetição e dos desdobramentos do mal por toda parte.

    A quem interessa a indústria do crime? Por que esse estado de agiotagem legalizada? Até quando alimentaremo-nos de ganância, cobiça e esbanjo? Não é dentro da gente que começa a sustentabilidade e o respeito ao próximo? Paciência, dignidade, honradez, simplicidade, ternura, fibra, compaixão, altruísmo, fidelidade e fé parecem raros artigos de luxo. Será que tudo virou ou sempre foi moeda de troca? Etiquetamo-nos preços, tornamo-nos números. Não habituo disso. O bom uso das tecnologias pode evitar o caos. E elas estão cada dia mais e mais nas postas dos dedos. Mesmo assim, as pessoas se esquecem de olhar nos olhos, não vemos mais cadeiras nas calçadas, tampouco redes nas varandas; no lugar destas estão as ‘redes sociais’. Fazer o que? De nada adianta escolas cheias de computadores se vazias estão de alunos interessados em semear e colher cidadania. Liberdade não é libertinagem. Ah! Família, berço. Entendo que corro sério risco de ser aqui interpretado como um reacionário às avessas. Onde estará o fio da meada?

    No final da Idade Média o italiano Nicolau Maquiavel já descrevia como imutáveis os traços do homo sapiens que em Latim significa homem sábio. Maquiavel definia os bípedes como gente “ingrata, volúvel, simuladora, covarde, ávida de lucro”. Dicotômico é saber que ele é considerado o pai da ciência política, um ferrenho defensor da legitimação do poder pelas implacáveis mãos do Estado – doa a quem doer. Talvez, nesse caldeirão fervilhante, sirva-nos de alento lembrar as palavras do pensador russo Fiódor Dostoiévski: “compara-se muitas vezes a crueldade do homem à das feras, mas isso é injuriar estas últimas”.

Balela tudo isso. É hora do meu café de bule e pão com manteiga. Fui!

_PAULO DE TARSO PORRELLI